quarta-feira, 29 de julho de 2009

uma história para se distrair do caminho

era uma vez um menino e sua impressionante capacidade de se esconder.
mimetizar-se até sumir.
sábia e única e sobrenatural
e extraordinária
habilidade de desaparecer, mesmo estando por ali.
ninguém sabe se é de nascença e ele aprendeu a sobreviver com isso
ou
se para existir melhor,
ele inventou, aprimorou, treinou, dominou a técnica camaleônica.
ninguém sabe, porque não dá pra ver.
as piadas do universo que nascemos para ser.
piadas e acidentes que nascemos para ser.

o que se sabe é que, apesar dessa sua técnica afiada ser passível de utilização aos propósitos mais diversos,
mas especialmente aos escusos
que envolvem sumiço e escondimentos,
o menino nunca se usou dela para nada que não inofensiva diversão,
curiosidade,
e um tanto de proteção.

com o passar do tempo, proteção é que o aumenta na necessidade dos humanos.
mesmo sem querer o menino passou a se esconder mais do que seriam os limites seguros do escapismo.
ele foi usando o suficiente
para desaparecer.
o que aconteceu é que um dia ele não sabia mais voltar a estar
de fato
corpo
realidade e ato
onde ele deveria estar.
era como sair
e perder as chaves da casa de si mesmo.

a parte satisfatória dessa lenda, é que ele não foi engolido pelo nó da eternidade.
ele está só invisível, andando por aí
mas se alguém acreditar que ele ainda existe (ou que é possível cair pra cima), ele vai voltar a corar.

era uma vez
uma menina que via melhor as cores invisíveis do que as que brilham demais.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

1707 - a caminho

sapato sapato sapato cigarro sapato sapato sapato cigarro sapato
Estranho que esteja pensando em cigarro no meio do desejo por sapatos.
Pelo que me lembro, nunca fumei. Já anoitece, andei o dia inteiro por um campo interminável de erva ruim que parece não levar a lugar nenhum. Tudo isso é redundância.
Campo interminável só pode levar a lugar nenhum de erva ruim e erva ruim só pode acabar em lugar nenhum e já nem deveria se chamar erva ruim já que não temos a boa pra contrapor. Erva ruim é a única erva daqui. Devia se chamar erva daqui. Ela não é feia. É uma plantinha que fica lá pela altura dos joelhos, tem folhinhas verdes e mimosas. Pra um desesperado, ela pode facilmente parecer amigável e boa, mas não é, nunca é. Há umas duas horas atrás, meus pés começaram a deixar um rastro de sangue e restos. Agora que escurece, minha pista está levemente iluminada. É a radiação que todos nós contemos. Penso que é bom que ninguém esteja me seguindo. Assim eu posso só achar bonito meu encalço fosforescente. Sem angústias nem temores.
Claro, meus pés doem de perder pedaços.
Mas não, não doem o suficiente pra me fazer chorar ou lamentar ter deixado tudo pra trás.
Sapato sapato sapato, me concentro no que eu vou encontrar.
Ele será durável, resistente, uma couraça por fora, mas macio, morno, acolchoado e confortável por dentro.
O sapato que eu vou encontrar, o meu novo sapato.
Dentro dele, meus pés vão descansar e se regenerar.
Com ele, meu caminho poderá se zilhoamplificar.
Meu pai me ensinou uma canção
que o pai dele cantava
"eu vou lá que andar é reconhecer, olhar, eu preciso andar um caminho só, vou buscar alguém, que eu não sei quem sou"*
De vez enquando, eu queria saber por onde o meu pai andou. Sei que eu nunca saberei. Sei que nunca tivemos amor suficiente pra dividir sobre caminhos. Se tivéssemos tido mais tempo, teríamos podido.
Pelo menos sinto orgulho de saber o que aconteceu com o meu pai e minha mãe.
Onde eles estão.
Nem vivos nem mortos. Intocáveis.
Mas eu sei onde eles estão.
Saber quem são seus pais, e onde eles estão, por aqui, é que se pode chamar de família e lar.
sapato sapato sapato cigarro sapato sapato sapato cigarro sapato
acho que vou começar a fumar
meu pai me contou que fumar era o que fazia o meu avô.
Meu sangue brilhante, corta a escuridão.




*primeiro andar - los hermanos

segunda-feira, 20 de julho de 2009

1707 b

depois que ela se foi não olho pra trás não pisco não paro não respiro o ar de onde estivemos - o ar de onde falamos de onde sentamos. depois que ela se foi não digo mais seu nome não choro nem um pouco, não relembro, não me esforço por guardar nem um pedaço nem um espaço nem um fragmento de alguma roupa vestida em ocasião especial, nunca houve ocasião especial.
depois que ela se foi e eu não pude contê-la,
não guardo - jamais -
lembrança ou memória.
aqui, lembrança e memória, ainda mais de alguém que desistiu, são mais venenosos do que erva ruim. erva ruim te mata rápido, te acaba.
guardar alguém que desistiu na cabeça te engana, polui a visão, nubla os perigos, mastiga o instinto de sobrevivência.
é começar a não aguentar também.
enterro o presente deixado pra mim, porque assim que o trem se foi de vez, já deixou de ser bonito, é puro perigo.
sigo andando.
para o resto da manhã, preciso de um objetivo.
agora existo pra encontrar um par de sapatos.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

dia 1707

- você acha que tem mesmo que ir?
Quase morro de vergonha depois de perguntar. Quero pegar as palavras ainda soltas no ar e enfia-las de volta na minha goela.
Olho pra baixo. Ela também. Procuramos um foco olhando pros meus pés. Continuamos andando. Meus pés estão imundos, onde não há lama cinzenta, há crostas de feridas antigas e manchas de sangue mais recente. A rara pele exposta está roxa. Faz menos de zero graus. O frio sempre é negativo.
Então ela diz
- porque voce nunca usa sapato?
AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAs enchem o ar.
Rimos muito, rimos demais, rimos os ultimos anos de vida e os que não virão.
Rimos pra não chorar. Rimos porque ainda nos importamos. Rimos porque não adianta mais se importar.
Estamos perto dos trilhos agora. Apesar de não serem usados há anos, eu ainda os escuto os trens chegando. Apesar de não haver mais minério azul pra ser transportado, ao chão às margens da ferrovia ainda é índigo, reluzente e tão radioativo que é até mais quente. Seguimos por ali, dá até pra tirar as mãos dos bolsos.
Nos damos as mãos.
Noto que a mão dela tem um dedinho a mais desde a última vez que a peguei. É um dedinho bonito. Acaricio esse dedinho com meu polegar super crescido, como um cão cuidaria de seu filhotinho mais fofo.
Olho pra cima. Como amanhece, teremos uma hora de céu vermelho. Ela não olha, diz que prefere não perceber que o céu pode ter essa luz. Tudo bem, cada um com seus pudores, cada um com seus tesouros.
Zaira pede pra sentarmos um pouco. Carrego sempre dobradinho no bolso um lençol de plástico pra estender no chão podre nessas ocasiões.
(cada um com seus pudores, cada um com seus tesouros)
Ela abriu a mochila e tirou um velho mp3 player. Eu já tinha ouvido falar deles, até visto um ou outro, mas nunca experimentei um desses.
-Onde voce conseguiu isso?
-Ontem eu fui até a casa onde meu pai cresceu...
-Porque você foi lá? Voce tah...com medo?Tah pensando em desistir? Vem Zaira, vamos embora, voce não quer ir praquele lugar, vamos ir ficando aqui enquanto der, do jeito que der como a gente sempre fez....
-NÃO. NÃO. NÃO.
Ela tem um cacoete no cérebro. Sempre repete 3 vezes quando se agita.
Achei que ela fosse chorar. Tive medo do que sairia se ela chorasse. Mas ela se conteve. Vem, vamos ouvir o que ele ouvia, ela disse.
Colocou um fone e me deu o outro.
Era uma música toda feita de barulhinhos, mas ainda organica, ainda emocional, ainda soando, ainda harmonica. Dava pra perceber que era uma musica feita num tempo onde ainda se sentia coisas como ódio e amor.
Ficamos ali, ouvindo até que de repente com o ouvido vago achei estar escutando a vinda de um trem,
tirei o fone do outro ouvido
prestei atenção
e era mesmo
chamei Zaira pra fora do transe da música
"escuta escuta é um trem, vamos embora"
ela só riu um pouco.
Botou então os dois fones nos proprios ouvidos
aumentou o volume
foi pra perto dos trilhos e disse
- como voce achou que eu ia pra lá?
Fiquei horrorizado, eu ainda esperava que ela desistisse.
Ela não me ouvia mais, mas viu meu rosto transtornado.
-Não se preocupe. Eu vou ficar bem. Parece que eles dão discos de verdade pra gente depois dos testes. Voce devia vir também, quando desistir.

Quando eu desistir.

Veio vindo veio vindo veio vindo o trem. Não era um dos azuis. O trem parecia até de um metal comum, normal, cinzento, simples. O trem não parou nem diminuiu. Veio vindo veio vindo veio vindo e quando se aproximou um homem com um braço muito comprido estendeu a mão e a puxou pra dentro.

Fiquei olhando, mas ninguém olhou pra mim de volta.

Um pouco adiante, vi uma mão acenando e algo sendo lançado pra fora do trem. Corri, era o mp3 player. Até que gostei. Mas acho que no fundo eu teria preferido o dedinho.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

o cheiro da vida acordando, se esvaindo, se movendo sempre em direção ao fim.
terminar, terminar é a sina da existência.
o cheiro do calor nas cobertas da noite passada, de passar a noite, de cumprir mais um horário ritual.
acredito no tempo porque ele não tem medo de mim.