quarta-feira, 30 de setembro de 2009

procurando olhos

Quasechuva desperta da transmissão na barriga da menina invisível alcançado pela dor. A mulher barriguda com ar tresloucado agora parte pra cima dele.
Com a velha, definitivamente acabou.
A mulher diz,
- voce está olhando pro nada, não tem nada ali, voce está vendo o nada, voce está vendo vendo vendo nada, voce comeu erva ruim, você comeu...
- Mas eu não estou vendo coisa alguma! Não estou nem olhando. Eu esto só...cansado. Tão cansado que deixo meus olhos pendurados no ar. - Não era uma desculpa muito boa, mas era um tipo de verdade.
Ela entretanto não se contenta nem controla, começa a armar a situação em que o matará de porrada: primeiro descer pesadas portas de insanidade sobre os olhos; então descontar toda a irmandade que poderia haver entre eles e simplesmente matar.
É uma coisa que acontece ali, o que começa não para mais.

Percebe o início do processo de sua morte.
Procura amárga-lo, não rola. Também não o aceita completamente, o fim podia ser mais interessante do que apanhando de mulher feia,
podia estar sedado pelo menos, mas se é o que há, se conforma.
A "coisinha" - que é uma nuvem de tons e sonidos - parece na dúvida entre entediada e assustada.
Ele não contava com mais nada.
Então, só pra concluir sua participação nessa existência,
perguntou:
-Porque isso?
Como é que chegara até sua morte?
A mulher parou o movimento. Não como se virasse estátua,
mais como se tivesse "sentado" em si, no meio de algo que armava.
Seu bote transformado num caminho suspenso.
Coisinha diz,
"o pesadelo é inominável".
Mas para Quasechuva,
-Não, não. Isso aí não vai servir.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

diálogo dentro da menina

Me aproximo das mulheres. A barriguda que bate não respira, grunhe resfolegando como um ex-ser-agora-demônio completamente perdido pra raiva e pra loucura. A que apanha virou um saco de ossos com passagem marcada só de ida pra terra dos pés juntos, ainda que os dela estejam bem separados, como o resto do corpo num manancial não humano e caótico. A pequena, menina ou anã, já desapareceu concretamente do meu olhar. Emana uns tons, coloridos e sonoros. Prefiro me concentrar nessa, a que não vejo bem. Espremo os olhos, fixo, desejo vê-la.
O que enxergo é uma cena, como se a pequena fosse um tubo de imagem projetando uma história.
São dois meninos sentados na base de um paredão de terra vermelha. Parece o fundo de um buraco, de tamanho suficiente pra ser a fundação de uma daquelas edificações que chamavam "casa". (Quando eu era pequeno, tinha uma caixa de recortes de casa. Não sei quem deixou aquilo pra mim, nem entendia direito o que era, mas sentia uma bola de pêlos na garganta (uquéque é saudade vó?) quando olhava aquilo e queimei aos dez.)

Diálogo dentro da menina:

1)tu sabe que tem uns bicho que quando são preso, comem as proprias patas pra se soltar?

2)como assim uns bicho? como assim? uns bicho pode ser qualquer bicho, e o mais provável é que seja mentira.

1)ah, nem vem tu sabe que é verdade.

2)tah eu acho que ja ouvi falar, mas se tu vai me contar conta direito. que bicho? hein hein, que tipo de bicho?

1)ah, não lembro bem, mas era raposa, ou urso. Um tipo assim. Ou lobo.

2)tah, acho que entendi, um tipo assim, mamífero selvagem

1)é ahahahahahahahaha, isso aí, mas que fica engraçado fica dizer mamífero selvagem...

2)ué, engraçado porque?

1)sei lá, porque pensar numa coisa que mama e é selvagem...é engraçado né?

2)meu que idiota, praticamente todos os mamíferos são selvagens uma coisa não tem nada a ver com a outra....ou melhor tem tudo a ver...ah sei lá, acho que é engraçado só nessa tua cabeça podre aí...

1)iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii....já começou a me tirar né? não sou cabeça podre não....só achei engraçado. mamar na teta, ser selvagem... ah, não tenho culpa se tu não pensa nas mesmas coisas que eu.

2)porra e não penso mesmo.

1)as vezes nem sei porque tu fica andando comigo, então.

2)nem eu, na real eu acho que vou embora

1)tah....mas tem certeza? eu acho que deve tah doendo ainda...

2)que doendo o que...o que tem pra estar doendo hein?

1)e tu tah com essa cara aí, esse olho cheio de água porque então?

2)mas nem to nada. NEM TO NADA. olha aqui bem pra mim, não to nada. COISA NENHUMA.

1)vamo dize que é só impressão minha então...mas que ele te machucou machucou....

2)bosta nenhuma. se não dói é porque não machucou. aprende comigo, aprende. aprende alguma coisa. SE NÃO MACHUCOU É PORQUE VC NÃO APANHOU. então tah inteiro, tah vivo.

1)mesmo que....

2)mesmo que qualquer coisa.

1)mmmm, legal. vou tentar me lembrar disso da proxima vez que alguém me bater...

2)CARALHO, NINGUÉM ME BATEU TAH?

1)ta, tah...calma aí, ninguem te bateu meu, tah tudo certo, como voce quiser....

2)sabe o que eu queria agora? um café preto. com cachaça. e um cigarro, mas um cigarro daqueles bem vagabundos sabe?

1)aposto que tu nunca fumou nem tomou café preto. muito menos com cachaça...

2)é animal...mas sempre tem um dia em que a gente começa. seu porra de mamífero selvagem...

sábado, 12 de setembro de 2009

subindo a colina

enquanto caminho ate as tres criaturas - e a medida que me aproximo a menor delas se apaga - penso que não deveria estar aqui
ou qualquer lugar
me lembro que eu tinha um quarto e uma cama onde aceitei morrer
até que ela me arrastou para fora
me obrigou a ve-la ir, assisti-la desistir de morrer comigo
partir
quebrar
algo próximo a uma esperança que tínhamos.
percebo que estou com os pés no osso, tocos, porque saí sem sapatos
sabendo que se ela embarcasse
não me importaria caminhar.
eu não sabia o quanto eu saberia fingir. e ir.
nem que seja por vingança
demorar um pouco mais até encontrá-la do outro lado
se é que há.
nem sei se eu deveria temer. ou sucumbir. nem sei se ainda estou em mim ou se a erva já me levou e sigo num moto-contínuo de existir.
saí da cama por ela
porque no fundo acreditava que com a minha cara horrível mas presente
ali ao lado
ela não teria coragem de ir.
quando ela subiu no trem esqueci esqueci esqueci esqueci esqueci na mesma cadencia do trem nos trilhos
esqueci.
há muita dor pra quem não esquece. muito deus. muita sobrevivência.
eu só sapato sapato cigarros.
estou bem perto das outras três, a menor é só um feixe de luz, não conto que ela exista.
a que está no chão já deve estar morta com tantas porradas.
se eu apanhar da mulher - vejo nitidamente uma mulher grávida que bate - baterei nela sem piedade.
tenho muitos motivos pra bater.
zaira nunca vai me pagar por ter disistido fingindo que tenta.
me chamo quasechuva e acho que já me ferrei demais. ou talvez só esteja me armando.
sapatos, sapatos, cigarros.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Chegando a algum lugar.

quando finalmente acordo,
depois de dormir, pesadelar, zumbizar, poetizar, atomizar, sofrer de fome
enlouquecer
e voltar
passaram-se varias partes do tempo chamadas dia.
Meus pés se transformaram em tocos. Movimento-me mais por estocadas na terra do que passos. Mas isso não me preocupa; estou apreensivo pela quase certeza de ter comido erva ruim. O que mais poderia ter me colocado nesse estado por tanto tempo e me anestesiado a ponto de não sentir dor nem falta das minhas extremidades?
Era bom esse efeito de seguir andando apesar de tudo.
Esse era o mais preocupante sintoma de erva ruim.

A última coisa de que me lembro é de pensar em sapatos e que encontraria os sapatos e que não pararia até sapatos.
Que eu desejara cigarros.
E mais adiante vira um clarão azul. O azul não parecia inofensivo ou saudável. Mas achei que não me antingiria.

O que quer que fosse, já tinha agarrado. Vou continuar. Talvez uma versão estragada de mim mesmo, mas vou continuar caminhando.

De qualquer forma, só lembro claramente do estrago de tempos em tempos.
Recordo vagamente de algum parente, uma tia, minha mãe talvez até, me contar sobre uma sensação parecida com isso que era "estar apaixonada". Lembro que ela contou passar dias inteiros na frente do computador. Falando com o namorado. Trocando emails. Instantaneamente. Arquivos. Essas merdas que eu não peguei.
E ela me dizia que se sentia como se estivesse sentada no parque vendo o sol e tocando o cara. E que a sensação que isso causava lhe apertava todos os orgãos internos. Constritos. Parece que com o tempo de convivencia a tendencia era que a sensação fosse amenizando. Se parasse totalmente é porque "não tinha mais nada a ver". Tenho até a impressão de que me divirto mais com essa história lembrando-a agora. Na época, não me fazia sentido algum, só muito chata. Entendo melhor sadomasoquismo.
E quero encontrar sapatos. Não sinto fome e não me perguntarei mais o porquê. Que venha o porquê e o porvir; e lá
logo adiante
eu vejo: Três vultos. Podem ser moças.
Daqui, eu já sei, eu já sinto, que a situação não é das melhores. A maior bate numa delas que está deitada, enquanto a menor, uma anã ou uma criança, grita desesperada.
Nem com uma luz perfeita como a do dia de hoje sobre um campo florido de erva ruim, esta cena é palatável ou de bom augúrio.
Mas é o meu destino ali na frente, meus sapatos logo adiante, e é pra lá que eu vou.

sábado, 5 de setembro de 2009

o amor explode como pipoca no milharal. pra além dos olhos tem verdade como varais de roupa no sabado de tarde.
o amor explode como a saída do inverno dos improváveis. como uns passos novos de dança.
como a desculpa em químicos - como uma música feita para despertar.
o amor explode como uma banda atrás de um pop perfeito.
um comentário sobre o tempo encobrindo a existência de desejos.
o amor mora em cidades distantes que se misturam por túneis carnívoros de amizade.
o amor despista o cansaço porque os melhores amigos estão por perto. e lavam as dores que não combinam mais com o novo fetiche do rosto.
o amor nos convoca a mergulhar em poças de profundidade insegura.
e a conversas desnecessárias.
e a doar um pouco de cérebro além dos rins e do sangue.
o amor é o milagre da nossa engenharia.
e a cola da matéria.
é uma ferida aberta. infeccionando pelos minutos de exposição.
é uma mentira coberta de razão.
é dormir para encobrir a verdade.
expor-se ao toco do osso do ridículo.
derreter na cadeira até o fim do medo.
dormir e chorar pra se limpar
dançar até passar
e não passar
é encontrar uma música nova
pra sofrer sem saber porque. é uma noite que nunca terminou.
é uma noite que nunca terminará
esvaziar todos os bolsos da racionalidade e sobreviver.
é fechar os olhos e ver com exatidão o rosto onde voce errou.
um erro que te perseguirá;
um desejo digno de permanecer.
uma permanência sem sentido. só sensação.