sexta-feira, 17 de julho de 2009

dia 1707

- você acha que tem mesmo que ir?
Quase morro de vergonha depois de perguntar. Quero pegar as palavras ainda soltas no ar e enfia-las de volta na minha goela.
Olho pra baixo. Ela também. Procuramos um foco olhando pros meus pés. Continuamos andando. Meus pés estão imundos, onde não há lama cinzenta, há crostas de feridas antigas e manchas de sangue mais recente. A rara pele exposta está roxa. Faz menos de zero graus. O frio sempre é negativo.
Então ela diz
- porque voce nunca usa sapato?
AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAs enchem o ar.
Rimos muito, rimos demais, rimos os ultimos anos de vida e os que não virão.
Rimos pra não chorar. Rimos porque ainda nos importamos. Rimos porque não adianta mais se importar.
Estamos perto dos trilhos agora. Apesar de não serem usados há anos, eu ainda os escuto os trens chegando. Apesar de não haver mais minério azul pra ser transportado, ao chão às margens da ferrovia ainda é índigo, reluzente e tão radioativo que é até mais quente. Seguimos por ali, dá até pra tirar as mãos dos bolsos.
Nos damos as mãos.
Noto que a mão dela tem um dedinho a mais desde a última vez que a peguei. É um dedinho bonito. Acaricio esse dedinho com meu polegar super crescido, como um cão cuidaria de seu filhotinho mais fofo.
Olho pra cima. Como amanhece, teremos uma hora de céu vermelho. Ela não olha, diz que prefere não perceber que o céu pode ter essa luz. Tudo bem, cada um com seus pudores, cada um com seus tesouros.
Zaira pede pra sentarmos um pouco. Carrego sempre dobradinho no bolso um lençol de plástico pra estender no chão podre nessas ocasiões.
(cada um com seus pudores, cada um com seus tesouros)
Ela abriu a mochila e tirou um velho mp3 player. Eu já tinha ouvido falar deles, até visto um ou outro, mas nunca experimentei um desses.
-Onde voce conseguiu isso?
-Ontem eu fui até a casa onde meu pai cresceu...
-Porque você foi lá? Voce tah...com medo?Tah pensando em desistir? Vem Zaira, vamos embora, voce não quer ir praquele lugar, vamos ir ficando aqui enquanto der, do jeito que der como a gente sempre fez....
-NÃO. NÃO. NÃO.
Ela tem um cacoete no cérebro. Sempre repete 3 vezes quando se agita.
Achei que ela fosse chorar. Tive medo do que sairia se ela chorasse. Mas ela se conteve. Vem, vamos ouvir o que ele ouvia, ela disse.
Colocou um fone e me deu o outro.
Era uma música toda feita de barulhinhos, mas ainda organica, ainda emocional, ainda soando, ainda harmonica. Dava pra perceber que era uma musica feita num tempo onde ainda se sentia coisas como ódio e amor.
Ficamos ali, ouvindo até que de repente com o ouvido vago achei estar escutando a vinda de um trem,
tirei o fone do outro ouvido
prestei atenção
e era mesmo
chamei Zaira pra fora do transe da música
"escuta escuta é um trem, vamos embora"
ela só riu um pouco.
Botou então os dois fones nos proprios ouvidos
aumentou o volume
foi pra perto dos trilhos e disse
- como voce achou que eu ia pra lá?
Fiquei horrorizado, eu ainda esperava que ela desistisse.
Ela não me ouvia mais, mas viu meu rosto transtornado.
-Não se preocupe. Eu vou ficar bem. Parece que eles dão discos de verdade pra gente depois dos testes. Voce devia vir também, quando desistir.

Quando eu desistir.

Veio vindo veio vindo veio vindo o trem. Não era um dos azuis. O trem parecia até de um metal comum, normal, cinzento, simples. O trem não parou nem diminuiu. Veio vindo veio vindo veio vindo e quando se aproximou um homem com um braço muito comprido estendeu a mão e a puxou pra dentro.

Fiquei olhando, mas ninguém olhou pra mim de volta.

Um pouco adiante, vi uma mão acenando e algo sendo lançado pra fora do trem. Corri, era o mp3 player. Até que gostei. Mas acho que no fundo eu teria preferido o dedinho.

3 comentários:

  1. eu quero que a gente nunca desista.

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  2. teu olhar sobre as coisas acende nelas as luzes apagadas.

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  3. Dava pra perceber que era uma musica feita num tempo onde ainda se sentia coisas como ódio e amor.

    Por isso tu não conhecia o mp3 player. Só o walkman amarelo.

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